Não foi o meu corpo que soterraste o teu! Foram palavras cuspidas ao vento que sepultaram a tua voz: ave andina que sobrevoou cumes sem sombras na hora da morte...
Não foi o meu adeus que desossou tua língua; mas a tua face caiada que libertou dos pântanos o fétido odor da traição!
Na pele assassina de um punhal, fui samurai que beijou a lâmina: última visão de um herói apaixonado...
Me arrastaram... Na sala de jantar estava imóvel. De mim, arrancaram meus olhos! A boca, porta que precipitou no abismo a minha voz, desaparecera... Nu, desfigurado e sem cor, estava!
Me jogaram num canto, onde há muito tempo jazia um abajur; hoje, cego e sem luz, iluminando solitário a escuridão: a minha, a dele e a dos outros indigentes... Exilaram-me num porão sem janelas!
Cortaram as mãos que um dia brilharam! Mutilado, não sentia frio nem calor; até a dor, a infame dor me abandonou... Apiedaram-se e deixaram, por fim, os meus pés; havia ouro em meus artelhos: recordações longínquas das noites sem fim...
No recinto imperial não estava mais! As gavetas se renderam aos cupins, as portas perderam suas vergonhas; apodrecido, o verniz pariu crateras e farpas!
Sem alças, era um corpo oco; um esquife vazio e sem vida... Nos pés, a prova viva de que reinei no grande salão de marfim!
Ontem, a cristaleira que abrigou taças, bailes e rostos monárquicos; hoje, um estorvo que contemplou a morte da lua...
Para Mário de Sá-Carneiro & Cecília Meireles Nas mãos, o presente; no coração, o passado...
Nos dedos, as lágrimas; nas artérias, a felicidade!
Nas unhas, o azul; nas veias, o vermelho...
Em mim, .................................................................... Dentro de mim, ......................................................................................
Na sala de jantar, um quadro suspenso! Sob o vidro, a alma entorpecida pelo tempo... Horas que perderam o tear, fios d'água que abandonaram calhetas...
No linho roto, as mãos ataviadas; pássaros sem asas que desenharam um corpo dormente! Os olhos, poços fundos e secos, os flancos, terras áridas que um dia abrigaram a vida...
Na imagem petrificada, um santo sem fé, um clamor sem pranto e um sudário morto...